03/10 - Hannover

E vai se aproximando o fim da viagem, com estes últimos dias vividos já num clima de tom menor, aquela satisfação surda com as quatro maratonas cumpridas, algum cansaço com tanto tempo viajando, a enorme tristeza com iniminente retorno a este beco sem saída que é minha vidinha de ir existindo, envelhecendo e me inviabilizando em São Paulo.
Hannover. Que tive vontade de visitar inspirado pela gravação de um show que o Mike Oldfield fez aqui. Mas há um daqueles detalhes aterradores: Diz meu app de mapinhas que já estive aqui antes, e eu não tenho qualquer memória de ter feito isto. Desta vez, ter percebido a situação antes de passar pela cidade, e não apenas algum tempo depois, como com Brisbane, me possibilitou estar atento, procurar puxar pela memória, tentar buscar dentro de mim alguma nesga de reconhecimento.... e nada! A cidade me permanece uma absoluta desconhecida. 
Se for parar pra pensar, poucas coisas na vida de fato ficam marcadas na memória para sempre. Como aquela namoradinha que gozava com meros beijos no pescoço, o que, confesso, até me deixava meio preguiçoso. Como aquele café com leite que comprei numa barraquinha de rua umas duas décadas atrás, já nem me lembro em que cidade, mas ainda me lembro do café. Como aquela moça que tinha uns dois centímetros de bicos de mamilos. Igrejas, fachadas de prefeituras e portas de museus (nos quais não entrei porque custava uma grana) são meio como mulheres, filmes de terror ou aquele monte de sabores de cápsulas de café Nespresso: depois da primeira centena,  é tudo mais ou menos a mesma coisa. Mesmo assim, a falta de identidade que esta comprovável falta de memória implica é assustadora.
O hotel, no qual sem nenhum lapso de memória eu nunca havia estado, é sui generis. Menos catacúmbico do que o hotel-cápsula de Zurique, mas, ainda assim, conseguem fazer caber em 5 metros quadrados um beliche, uma pia e um chuveiro. Dá pro Marcola e o nove dedos dividirem alegremente o espaço, e ainda fazer uma superlotaçãozinha com a chegada do capitão. As privadas, em conpensação, ficam lááá no fiiiim do corredor.
Hoje foi feriado nacional aqui na Alemanha, o que significou uma cidade ainda mais fechada, comatosa, desinteressante, do que em um domingo. Sem ao menos uma praça central onde algo interessante estivesse acontecendo, ao menos que eu tenha encontrado, só restou ficar flanando a esmo, de museu fechado ao próximo museu fechado, como se eu fosse pagar para entrar se estivesse aberto.
Mas minto. Na hora do almoço, para variar, teve o programa cultural, uma apresentação de kanun e harpa, seguido de um brunch no teatro, razoavelmente baratinho, 5 euros. Parecia imperdível, ouvir música diferente e depois ainda bater um rango incluso. Mas aquela merda na verdade era uma apresentação didática juvenil, com um palco cheio de criancinhas melequentas correndo de um lado para outro e fazendo barulho, e a tia apresentando longamente os instrumentos, entrevistando os intérpretes, obviamente em alemão, e, de música mesmo, que é bom, só uns cinco pedacinhos breves. Ao menos o almoço redimirá o programa, pensei eu. Mas não, o "brunch" se limitava a uma 'sopa turca', cozidão vegetal com todas as cores e formatos possíveis de pimentão, e umas fatias de pão branco. O caldinho daquela coisa nojenta até não era ruim.
E no meio do dia, mastigando uma jujuba, eis que uma obturação mais monstruosa do que a votação no capitão no primeiro turno pula de um dente meu.
Em tempo certinho para deixar o dente exposto por uns dias, se deteriorando mais ainda, até conseguir chegar à minha sempre prestimosa dentista, mas insuficiente para acionar o seguro pelo qual paguei tão caro. É a decrepitude dia após dia cada vez mais presente em tudo aquilo que vive, e não é agraciado pela dádiva do câncer metastático precoce.
E então, depois de uma enjoativa dieta de Verdi ao longo de toda esta viagem, eles demonstram que são capazes de encenar algo como Nixon in China. Mas é só pra junho de 2023.

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